Nova Zelândia tem campanha para que pessoas não criem mais gatos por consideração à fauna ameaçada


O gato doméstico – aquela coisa fofa peluda tão amada em todo o mundo - também é um dos predadores mais destrutivos do planeta, matando por diversão e caçando espécies raras até a extinção. Os gatos prosperam porque as pessoas os protegem – mas será que deveriam?


A reportagem é de Marco Evers, publicada na revista Der Spiegel e reproduzida pelo Portal Uol, 14-02-2013.

O que aconteceu com o pássaro kaka? E o weka, o kokako e o kiwi? Eles estão todos em perigo de extinção, como tantas outras espécies de animais únicas da Nova Zelândia. Muitas vezes, eles acabam nas mandíbulas do que provavelmente é o mais assassino predador do planeta.

O carnívoro não parece tão mortífero quanto o tubarão branco, tão musculoso quanto o urso pardo ou tão ameaçador quanto o Tyrannosaurus rex.  Mas não deve ser subestimado. O Felis catus – o nome científico do gato doméstico - é um assassino frio e numeroso, com centenas de milhões de indivíduos.


Graças ao seu charme, o gato conseguiu conquistar os corações dos seres humanos e subjugá-los. O Homo sapiens atende a todas as suas necessidades, sejam nutricionais, médicas ou políticas. Em casa, o gato faz o papel do bicho de estimação caprichoso, mas fofinho. Uma vez do lado de fora, porém, ele retorna à sua verdadeira natureza, tornando-se nada menos que um assassino à espreita, sem qualquer consciência, piedade ou compreensão.

"Os gatos precisam sumir", diz Gareth Morgan, empresário de 59 anos que está tentando ser um rico filantropo. Mas sua atual missão o coloca no centro de uma controvérsia mundial. Morgan não está pedindo a morte dos gatos, apesar de dizer que isso pode ser "uma opção". Com sua campanha "Fora Gatos", Morgan está meramente pedindo aos seus compatriotas neozelandeses, por consideração à fauna ameaçada, que não substituam seus gatos quando morrerem.


Morgan está convencido que a vida selvagem da Nova Zelândia estaria melhor sem os assassinos peludos. As cidades estariam cheias de cantos de passarinho, os pinguins poderiam passear pelas praias sem medo- e os pássaros kiwis, não os gatos, caminhariam pelos jardins. A evolução não forneceu à Nova Zelândia predadores em terra. Como resultado, suas espécies nativas simplesmente não conseguem enfrentar os gatos. Ainda assim, os neozelandeses estão entre os povos que mais gostam de gatos. Quase metade dos 1,7 milhão de lares do país tem pelo menos um felino.

"Estamos absolutamente chocados"

No mês passado, um estudo dos EUA revelou o quanto é nociva a praga dos gatos. Ele concluiu que os gatos matam muito mais criaturas plumadas do que os especialistas temiam até hoje. Os pássaros estão sendo mortos aos milhões nos EUA. Eles batem nas janelas, entram nas turbinas, são envenenados por pesticidas ou atropelados por carros. Mas há outro perigo criado pelo homem e muito mais ameaçador para os pássaros: os guerrilheiros suburbanos, os gatos domésticos.

Uma equipe de biólogos chefiada por Scott Loss, do prestigiado Instituto Smithsonian de Conservação da Natureza, analisou todos os estudos relevantes sobre a questão e fez um cálculo com os números encontrados. O resultado chocante, publicado na revista online "Nature Communications", é que 84 milhões de gatos domésticos nos EUA, junto com mais de 30 milhões de gatos selvagens, matam de 1,4 bilhão até 3,7 bilhões de pássaros nos EUA por ano.

No passado, os biólogos acreditavam que o número de vítimas anuais era de centenas de milhões. "Ficamos absolutamente chocados com os resultados", disse Peter Marra, um dos autores do artigo, ao "New York Times". Os gatos também matam entre 6,9 e 20,7 bilhões de mamíferos, inclusive toupeiras, coelhos e esquilos. Os gatos matam o que se mexe e é menor do que eles, e não são detidos nem por cobras venenosas ou escorpiões.

Os pesquisadores concluíram que os gatos selvagens são responsáveis pela maior parte das mortes, mas que os gatos domésticos também são responsáveis por "substancial mortalidade animal selvagem", de acordo com o estudo. Eles concluem que medidas drásticas devem ser tomadas, como manter os gatos dentro de casa na época de reprodução.

Os cientistas britânicos também estão preocupados, especificamente por causa de duas tendências. O número de gatos no Reino Unido dobrou desde 1965 e, ao mesmo tempo, as populações de estorninhos e pardais nas cidades caíram. Quem ousa sugerir uma relação entre as duas tendências muitas vezes se torna alvo de duros ataques pelo poderoso lobby dos amantes de gatos.

No Reino Unido, há algumas vezes até 1.000 gatos por quilômetro quadrado nas áreas habitadas. Nem em Serengeti uma espécie predadora jamais atingiu uma densidade de população tão alta, pois os predadores selvagens têm que viver daquilo que matam. Mas não é assim com os gatos. Eles matam porque eles são movidos por um instinto caçador e para passar o tempo. Mas eles fazem refeições regulares em casa.

Morte por proximidade

Os pesquisadores britânicos apontam que o problema dos gatos deve ser até pior do que parece, porque os gatos podem até causar a morte sem matar ativamente. O mero fato de existirem basta. Uma equipe de pesquisadores chefiada por Andrew Beckerman, da Universidade de Sheffield, concluiu que prevalece uma "ecologia do medo" nas áreas infestadas de gatos. Os pássaros estão constantemente estressados. Eles ficam preocupados com os predadores em vez de seus filhotes, e perdem a capacidade de se concentrar suficientemente na alimentação. Em casos extremos, as populações de pássaros caem até 95% como resultado.

O gato doméstico está listado entre as 100 espécies mais perigosas e invasivas. Ele se originou no Oriente Médio onde conseguiu se fazer adorar pelos humanos milhares de anos atrás. Depois que conquistou a proteção humana, o gato se expandiu para todos os cantos da Terra.

Especialmente nas ilhas, os gatos, junto com os ratos, fizeram um dano irreparável para o ecossistema. O carcará-de-Guadalupe não sobreviveu ao seu encontro com o gato, nem o sanã-do-Havaí. Os gatos contribuíram para a extinção de pelo menos 22 espécies de pássaros só em ilhas.

Os resultados do estudo americano são "alarmantes" e "claramente aplicáveis à Alemanha", diz Axel Hirschfeld do Comitê Contra a Matança de Pássaros em Bonn. Ele quer usar o novo estudo para instar a Federação de Bem-Estar Animal alemã a conduzir uma campanha educacional para os donos de gatos. A única vantagem, diz Hirschfeld, é que "os gatos não selecionam suas vítimas de acordo com a Lista Vermelha", referindo-se à Lista Vermelha da Iucn de Espécies Ameaçadas, que é o inventário mais completo do mundo de conservação de espécies.

Há pelo menos 8 milhões de gatos domésticos na Alemanha e, quando matam pássaros, suas vítimas em geral são melros, pardais, pintarroxos e chapins. Os gatos raramente pegam espécies ameaçadas porque estas em geral não frequentam os jardins suburbanos, território primário da facção felina.

Na Alemanha, quase não há resistência aos gatos. Em um caso, contudo, na cidade de Neu Wulmstorf, perto de Hamburgo, a comunidade construiu uma barreira de ultrassom para proteger o muito ameaçado codornizão. O sinal, inaudível para as pessoas, visa impedir que os gatos cacem em uma área de conservação próxima.

De outra forma, os alemães são relativamente silenciosos sobre a questão. A Agência Federal de Conservação da Natureza está interessada em víboras, lobos e libélulas anãs, mas não nas vítimas do mais bem sucedido predador da Alemanha. Uma porta-voz admite que o programa de monitoramento nacional da agência não coleta dados sobre gatos domésticos.

Por razões de conservação de pássaros, as agências do governo alemão impõem regulamentos estritos para os proprietários de imóveis, determinando quando eles podem ou não aparar ou cortar suas cercas vivas e arbustos. Mas em nenhum lugar na Alemanha os proprietários de gatos são proibidos de deixar seus predadores saírem de casa durante o período crítico entre março e agosto. Como resultado, milhões e milhões de jovens pássaros são vítimas de gatos por ano, muitas vezes horas depois de deixarem seus ninhos.

É nesta altura que os pássaros saltitam no chão sem jeito, ainda aprendendo a voar e inexperientes demais para interpretar adequadamente os avisos de perigo dos pais. Eles são presas fáceis para os gatos. Os sininhos que proprietários de gatos informados colocam nas coleiras de seus bichos assassinos não adianta muito nesses casos.

Gatos selvagens e de rua também são um problema crescente na Alemanha. As autoridades estimam em cerca de 40.000 o número de gatos de rua em Colônia, até 100.000 em Berlim e 2 milhões no país todo. Eles não estão em muito boas condições. Amantes de animais bem intencionados os pegam e os castram para que não possam mais se reproduzir. Mas então os gatos são devolvidos a sua existência de caçadores furtivos, em detrimento da população de aves.

"É hora de termos uma conversa sobre o número de gatos", diz Andreas von Lindeiner, da Organização de Proteção de Pássaros da Baviera. "Esse número certamente poderia ser um pouco reduzido".

"Não conseguimos quantificar o fator gato"

Mas provar a culpa dos gatos é um problema. As populações de muitas espécies, como o pardal, estão caindo. Talvez os gatos sejam os culpados, em parte. Mas a felosa-comum está se saindo muito bem, apesar de ser o principal alvo dos predadores. As populações de melro estão caindo em algumas regiões, mas por uma razão diferente: o vírus usutu, que vem da África, está arrasando suas fileiras, matando centenas de milhares.

"Não conseguimos quantificar o fator gato", diz Lindeiner. É claro que o gato tem um papel na matança diária, mas o quanto esse papel é determinante no que concerne as perspectivas de futuro de uma dada espécie continua um mistério.

Hans Schmidt, do Instituto Ornitológico Suíço, na cidade suíça de Sempach, também tem suas suspeitas. O tordo-músico está se tornando mais comum na Europa Central, mas não na Áustria e Suíça ou no Sul da Europa. Schmidt suspeita que a culpa esteja nos quase 1,4 milhão de büsis, um termo amoroso para gatos na Suíça. As espécies que já estão com problemas, tais como o redstart comum (da família Muscicapidae), estão sofrendo mais perdas por causa dos gatos, o que torna sua situação ainda mais difícil. Mas nem mesmo Schmidt consegue ter provas contra os predadores que possam ser sustentadas na justiça.

Para Schmidt, o argumento que as criaturas de garras só atacam os pássaros que estão doentes ou fracos é "absurda". Ele salienta que um grande número de pássaros perfeitamente saudáveis também morre nas garras dos bichanos peludos. Shcmidt expressa a verdade desagradável: "A densidade da população de gatos simplesmente é alta demais".

Todos os dias, cidadãos preocupados entregam pássaros aos com amantes de pássaros como Schmidt, esperando que as vítimas da violência dos gatos possam se recuperar. Mas a recuperação é rara. Os gatos enfiam os dentes fundo nos tecidos das presas. Se o ferimento não matar o pássaro, a infecção que se segue provavelmente matará.

Para o ativista Gareth Morgan, na Nova Zelândia, a solução para o problema do predador é bem simples: "As pessoas que amam seus gatos devem mantê-los dentro de casa". Se não, "este deve ser seu último gato".

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