Sexta, 12 de abril de 2013
Tudo começa com a fome, aquele ronco no estômago que faz todo mundo – os que podem – interromper seus afazeres na hora do almoço para encarar um prato de comida. No shopping Eldorado, zona oeste de São Paulo, mais ou menos 6 mil pessoas lotam a praça de alimentação diariamente para acalmar seus instintos. Têm à disposição restaurantes japoneses, americanos, mineiros e australianos, sem contar lanchonetes e docerias. Mas nem todo mundo dá conta de comer o que pede, e é no rescaldo do incessante sobe e desce dos garfos que a administração do lugar resolveu investir.
A reportagem é de Tadeu Breda e publicada por Rede Brasil Atual, 04-04-2013.
Cerca de R$ 4,5 mil mensais são necessários para que todo alimento jogado fora pelos clientes do Eldorado em seu cotidiano périplo culinário deixe de ser encaminhado aos aterros sanitários e vá parar lá em cima, no telhado, onde vira terra para horta. Essa foi a maneira que o shopping encontrou para reduzir o desperdício: aproximadamente 400 quilos de comida descartada todo santo dia. Dariam para servir umas 800 refeições e aplacar fomes por aí, mas passaram por pratos e bocas alheias, e seu destino natural seria o lixo. "Sabe aquele restinho nojento de arroz que fica na pia? Aquilo que na casa da gente nem gostamos de mexer?", compara o agrônomo Rui Signore, um dos engenheiros responsáveis por levar adiante o reaproveitamento de material orgânico no Eldorado. "É um dos piores resíduos que existem. Ninguém quer trabalhar com isso."
Mas não precisou de muita insistência para que os donos do shopping gostassem da ideia. Claro que, no começo, tiveram reservas. "Havia algumas dúvidas operacionais", explica, ressaltando que um projeto-piloto, iniciado em fevereiro de 2012, acabou com todos os impasses. "Fizemos testes por um mês e medimos os resultados. Acompanhamos temperatura, cheiro e quantidade de insetos. Ficou tudo sob controle." Quando a fase experimental terminou e os resultados foram apresentados à chefia, os patrões perguntaram: É só isso? "A simplicidade às vezes é um problema", avalia Tiago Silva, engenheiro civil do shopping. "O procedimento é tão simples que as pessoas nem acreditam que seja possível."
Agora, todo resto de comida que sai da praça de alimentação é colocado em sacos marrons e levado por funcionários à parte de trás do shopping – um ambiente hostil, escuro e barulhento, meio encardido, que nada tem a ver com os pisos reluzentes e as vitrines iluminadas que ficam à mostra da clientela. Já num contêiner, a comida descartada sobe um elevador até a unidade de reciclagem. Nada extraordinário: uma salinha três por três com grandes caixotes de plástico, sacos de serragem e uma betoneira igual às utilizadas nos canteiros de obra para bater argamassa.
Caminho do lixo
O primeiro passo é misturar aquele monte de arroz, feijão, hambúrguer, pão, osso de frango, salada – tudo – com serragem. "Compramos de uma madeireira da região", conta Rui. "E tem de ser de madeira certificada. Afinal, estamos trabalhando com ecologia." O agrônomo explica que, sem os restos de madeira, a comida se transforma num grande purê – e a compostagem não funciona: o material apodrece, empesteia o ambiente e junta bicho. "Precisamos da serragem para retirar a umidade e dar balanço ao composto."
Depois vem o ingrediente secreto: uma mistura de bactérias especialistas em comer e digerir resíduos orgânicos com grande rapidez. "São enzimas produzidas por pesquisadores da Universidade Federal de Uberaba, em Minas Gerais, e que aceleram muito o processo." Tudo então é levado à betoneira e misturado por seis horas. O que sai da máquina é um material homogêneo e amarronzado – a cor vem da serragem e das enzimas –, com cheiro de comida industrializada que lembra os molhos especiais da cadeia de lanchonetes mais famosa do mundo. Nenhum odor que inspire nojo ou faça lembrar de lixo – muito menos do lixo doméstico que temos em casa e, com a ponta dos dedos, levamos até a rua pingando.
Da unidade de reciclagem, o composto é levado para o teto, onde passa mais uns dias descansando sob a intempérie. "Com o sol, a mistura atinge até 70 graus", diz Rui. "Preciso dessa temperatura para esterilizar." O que havia de possíveis vetores morre no calor intenso e pronto: basta semear. Em 30 dias, recebendo chuva e vento, e mais sol, os restos de comida reciclados pelo shopping viram terra – inclusive com cheiro de terra, para tristeza de quem tinha gostado da ideia de plantar sobre uma mistura com aroma de hambúrguer e, de repente, conseguir quiabos mais adaptados ao paladar infantil.
Agora mesmo crescem nos dois canteiros do Eldorado berinjelas, tomates, abóboras, jilós, manjericão, confrei, hortelã, erva cidreira e outras plantas medicinais que, promete o agrônomo, se transformarão muito brevemente em chá na mesa de cada funcionário do lugar. Por enquanto sobra espaço no teto, mas a intenção é forrar a laje de hortas. "Temos 9.500 metros quadrados de telhado. Isso é quase 1 hectare", compara Rui. "Não é todo mundo que tem uma fazenda em plena avenida Rebouças." E ainda menos uma fazenda com cheiro de batata frita, porque é pelo telhado que escapam os exaustores de todo o shopping, trazendo as nuvens de gordura das cozinhas.
Autossustentável
Também é lá em cima que se encontra o condensador do sistema de refrigeração de ar, uma cachoeira que, segundo Sérgio Nagai, gerente de operações, descarta 100 mil litros de água por dia apenas para manter a temperatura amena na parte de dentro. Futuramente, quando caixotes cheios de composto orgânico estiverem espalhados por toda a extensão da laje, alimentando as plantas, o Eldorado pretende reutilizar a água do ar condicionado para irrigá-las. Há outros benefícios no horizonte. "Com o telhado verde, você consegue diminuir em até um grau a temperatura interna do shopping e reduzir o consumo de energia elétrica com ar condicionado", contabiliza Nagai. "Com a compostagem, também aumentamos a venda do material reciclável."
O gerente de operações diz que, depois que começou a reutilizar o lixo orgânico, o shopping evita que restos de comida "sujem" plásticos, papéis, vidros e metais comercializados com os centros de triagem – e que só podem ser enviados para reciclagem se estiverem limpos. Colocando tudo na ponta do lápis, a conta vale a pena. "Entre economia de energia e aumento na venda de recicláveis, uma coisa compensa a outra e o investimento com a horta fica no zero a zero" – e com o saldo adicional de poupar o meio ambiente de 50 toneladas mensais de comida estragada, diferença já sentida pela administração.
O objetivo dos engenheiros do Eldorado é que, dentro de cinco anos, não haja mais caminhões de lixo saindo das garagens do shopping. Hoje, porém, o empreendimento ainda manda para os aterros sanitários paulistanos entre 250 e 300 toneladas de resíduos sólidos por mês. "É um volume muito grande", reconhece Nagai. "Reciclamos apenas 19% de tudo o que produzimos aqui." O gerente de operações lembra que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, sancionado pelo governo federal em 2004, obriga estruturas gigantescas, como shoppings centers, a darem uma destinação adequada para o lixo. Mas não há nenhuma legislação que determine a implementação de hortas.
"O teto verde veio para solucionar o problema que teríamos com a reciclagem dos restos de comida e da praça de alimentação. Era uma quantidade muito grande de composto", revela. Nagai imagina o dia em que os próprios restaurantes do shopping poderão utilizar alguns produtos cultivados ali mesmo, na horta do telhado, para compor seus pratos. "Seria sensacional", vislumbra. "Transformar lixo em comida parece uma ideia meio maluca, mas depois que a gente vê a horta nascendo, sabe que é perfeitamente possível."
fonte: Unisinos