No verão de 1913, num campo logo ao sul do Cairo, na margem oriental do Nilo, um engenheiro americano chamado Frank Shuman posicionou-se diante de uma reunião da elite colonial do Egito, incluindo o cônsul-geral britânico, lorde Kitchener, e ligou sua nova invenção.
Em pouco tempo, galões de água se derramaram de uma bomba, saturando o solo a seus pés. Atrás dele estavam fileiras e mais fileiras de espelhos curvos seguros sobre berços metálicos, todos voltados para o sol fortíssimo no céu. Quando os raios do sol batiam nos espelhos, eram refletidos para um tubo fino de vidro que continha água.
A água, agora superaquecida, virava vapor, resultando em pressão suficiente para mover as bombas usadas para irrigar os campos em volta, com as lucrativas plantações egípcias de algodão. Tratava-se, disse Shuman, de uma invenção que poderia ajudar o Egito a tornar-se muito menos dependente do carvão que era importado das minas britânicas, com altos custos.
"A raça humana acabará tendo que usar a energia direta do Sol ou reverter à barbárie", escreveu Shuman em carta à revista "Scientific American" no ano seguinte. Mas o início da Primeira Guerra Mundial, alguns meses mais tarde, pôs um fim abrupto a seu sonho, e em pouco tempo seus cochos solares foram quebrados, sendo o metal usado como ferro-velho para o esforço de guerra. A barbárie pareceu ter prevalecido.
Quase um século mais tarde, um comboio de ônibus interurbanos com ar condicionado percorre o subúrbio de alto padrão de Maadi --onde Shuman demonstrou seus painéis solares rudimentares--, prosseguindo por 90 km em direção a Kuraymat, uma área de deserto plano e desabitado perto da cidade de Beni Suef.
A delegação internacional de alto nível de executivos-chefes, políticos, financistas e cientistas veio para visitar uma usina elétrica "híbrida", nova em folha, que emprega gás e painéis solares para gerar eletricidade. Antes de os ônibus chegarem aos portões de segurança da usina, seus 6.000 cochos parabólicos --cada um com seis metros de altura, e todos tendo uma superfície conjunta de 130 mil m² -- já são visíveis desde a estrada.
Embora os painéis sejam responsáveis por apenas um sétimo da capacidade geradora da usina, de 150 MW, o governo egípcio, que vinha tentando desenvolver a usina desde 1997, espera provar à delegação que é o sol do deserto --e não combustíveis fósseis, como gás, carvão ou petróleo-- que deveria ser usado para gerar uma parte muito maior da eletricidade consumida não apenas no Oriente Médio e Norte da África (Mena), mas, crucialmente, também na vizinha Europa.
Sol do deserto pode suprir energia do mundo
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MAIS ENERGIA
Gerhard Knies, físico de partículas alemão, foi a primeira pessoa a estimar quanta energia solar seria necessária para satisfazer a demanda de eletricidade da humanidade. Em 1986, em resposta direta ao acidente nuclear de Chernobyl, ele anotou alguns números e chegou à seguinte conclusão notável: em apenas seis horas os desertos do mundo recebem mais energia do Sol do que os humanos consomem em um ano.
Se mesmo uma parte minúscula dessa energia pudesse ser atrelada --uma área do deserto do Saara do tamanho do País de Gales poderia, teoricamente, suprir a Europa inteira de energia --, Knies acreditava que poderíamos deixar os combustíveis sujos e perigosos para trás para sempre. Ecoando a frustração de Schuman, Knies indagou mais tarde se "realmente somos suficientemente estúpidos, como espécie", para não fazer uso melhor desse recurso. Nas duas décadas seguintes ele trabalhou, muitas vezes sozinho, para implantar essa ideia na consciência pública.
O coroamento de seus esforços é "Desertec", uma iniciativa liderada em grande parte pela Alemanha que visa fornecer até 2050 15% da eletricidade consumida na Europa, por meio de uma imensa rede de usinas solares e eólicas que se estendem pela região Mena e se ligam à Europa continental por cabos de transmissão de corrente direta de alta voltagem, que perdem apenas 3% da energia que carregam a cada mil quilômetros percorridos. O custo total de construção do projeto foi estimado em € 400 bilhões.
Até agora o projeto Desertec tem sido visto por muitos observadores como pouco mais que uma miragem, o plano fantasioso de sonhadores bem-intencionados. Afinal, os obstáculos técnicos, políticos, de segurança e financeiros podem parecer insuperáveis.
Nos últimos dois anos, contudo, a iniciativa vem recebendo apoio importante de alguns dos maiores nomes corporativos da Alemanha, país que já lidera a Europa na adoção e no desenvolvimento de energia renovável, especialmente a solar. No outono de 2009 um consórcio "internacional" de empresas formou a Desertec Industrial Initiative (Dii), com empresas de peso, como E.ON, Munich Re, Siemens e Deutsche Bank, constando como "acionistas". O anúncio feito pela Alemanha no início deste ano de que, na esteira do desastre de Fukushima, ela ia acelerar seu abandono total da energia nuclear, de repente chamou atenção muito maior para a ideia da Desertec.
Quando a isso se somam as negociações internacionais enfraquecidas e os avisos cada vez mais tenebrosos sobre as mudanças climáticas --no mês passado, a Agência Internacional de Energia avisou que o mundo se encaminha para mudanças climáticas irreversíveis se não começar a reduzir suas emissões de carbono dentro de cinco anos--, parece que chegou o momento certo para uma ideia tão ambiciosa, em escala tão grande.
No mês passado, em sua conferência anual no Cairo, a Dii confirmou para o mundo que a primeira fase do plano Desertec está prevista para começar no Marrocos, em 2012, com a construção de uma usina solar de 500 MW perto da cidade de Ouarzazate, no deserto. O projeto, que vai cobrir uma área de 12 km², funcionará como "projeto de referência" que, como o projeto egípcio em Kuraymat, pode ajudar a convencer investidores e políticos de que usinas semelhantes podem ser repetidas na região Mena nos próximos anos e décadas.
"No Marrocos, está tudo pronto para entrar em ação", anunciou Paul van Son, o CEO da Dii, aos delegados visitantes. Ele disse que já estão em curso negociações com a Tunísia e Argélia para a entrada desses países na "primeira fase" da Desertec. Países como Egito, Síria, Líbia e Arábia Saudita devem ingressar na fase de "intensificação" a partir de 2020, quando os cabos de transmissão já tiverem sido instalados através do Mediterrâneo e via a Turquia. A previsão é que o empreendimento inteiro se torne financeiramente auto-sustentável até 2035.
QUEM VAI PAGAR?
Van Son rejeita qualquer hipótese de que o projeto Desertec seja baseado em fundações precárias feitas de presunção, ingenuidade e esperança. "Sim, está claro que a atual crise financeira global não vem ajudando muito, mas todo o mundo também compreende que ser dependente de combustíveis fósseis gera vulnerabilidade", disse ele.
Van Son também rejeita qualquer noção de que o Desertec carregue um traço que seja de neocolonialismo. Essa visão foi levantada no início deste ano por Daniel Ayuk Mbi Egbe, da Rede Africana para a Energia Solar.
"Muitos africanos são céticos em relação ao Desertec", ele disse. "Os europeus fazem promessas, mas, no final, eles trazem seus engenheiros e seus equipamentos e então vão embora. É uma nova forma de exploração de recursos, igual ao que foi feito no passado." Outros palestrantes da região Mena apresentaram argumentos semelhantes, dos quais não o menos importante foi que as populações locais, que lutam contra a pobreza, vão necessitar urgentemente e com prioridade qualquer eletricidade que venha a ser gerada.
"Quando a ideia do Desertec primeiro foi anunciada, a Liga Árabe reagiu com irritação e cólera", admite Van Son. "Num primeiro momento eles não entenderam a proposta, mas explicamos que ela beneficiaria também seus membros. Explicamos que seria um processo cooperativo, e eles se descontraíram. Enfatizamos que é algo que vai beneficiar a todos. Agora a relação é inteiramente positiva."
Os defensores do Desertec argumentam que o projeto merece ser apoiado porque vai melhorar a segurança energética, ajudando a diversificar a oferta. No momento, diz Van Son, os europeus são vulneráveis à chamada "arma energética": os casos em que um país rico em energia faz seus vizinhos de refém, restringindo ou negando o fornecimento de energia. Pense na Rússia e seu gás, disse ele. Ou em um ataque terrorista a um oleoduto. O Desertec vai ajudar a diluir essas ameaças.
Mas o que deixa Van Son perplexo é o fato de o domínio atual da Dii por empresas alemãs ser algo que suscita suspeitas (não havia um único representante político ou empresarial do Reino Unido presente na conferência, mas pelo menos metade dos presentes eram da Alemanha). "Sim, a iniciativa saiu da Alemanha. Mas há 15 nacionalidades diferentes envolvidas, incluindo firmas como HSBC e Morgan Stanley. E isso é apenas o começo."
Uma pergunta comum na conferência foi: "Quem vai pagar pelo Desertec?" Fala-se em empréstimos de instituições de desenvolvimento como o Banco Mundial (é o caminho que está sendo seguido pelo Marrocos). A presença de bancos alemães sugere que também eles estudavam a possibilidade de se tornarem financiadores chaves. Mas fica a sugestão de que boa parte do ônus será carregado pelo contribuinte europeu, ou através de subsídios da UE ou de tarifas acrescentadas às contas de eletricidade.
A deputada alemã cristã democrata Angelika Niebler viajou ao Cairo como membro do comitê energético do Parlamento Europeu. Ela diz que ainda é cedo para falar de financiamento pela UE, mas acrescenta: "Nos próximos anos, a energia vai ser para a UE uma prioridade maior do que a agricultura tem sido no passado, e o Desertec certamente será levado em conta nas discussões".
Hans Josef-Fell também está no Cairo para assistir à conferência como representante do Partido Verde alemão. "Há um receio na Alemanha de que pagar por eletricidade verde vinda diretamente do norte da África será uma carga pesada demais para nossos consumidores", diz ele. Os preços da eletricidade na Alemanha já estão entre os mais altos da Europa, em parte devido à enorme onda de instalações de energia renovável espalhadas elo país.
A Europa, especialmente a Alemanha, parece saber cada vez melhor o que quer da Desertec. Mas, o que dizer de seus parceiros do Mena? Obaïd Amrane, membro do conselho da Agência de Energia Solar do Marrocos, o órgão governamental responsável por administrar a primeira usina do Desertec, diz que seu país tem seus próprios planos para a eletricidade gerada na usina - e para as outras quatro que virão até 2020 --, e que esses planos não necessariamente incluem a venda da energia à Europa.
"Até 2020 prevemos que o consumo de eletricidade no Marrocos dobre, à medida que cresce a população e eleva-se o nível de vida", diz ele. "No momento, somos dependentes em 97% de energia do exterior, algo que está ficando cada vez mais insustentável. Nossa meta agora é que até 2020 42% de nossa capacidade seja formada por energia renovável. Se alguém quiser que o façamos, construiremos capacidade extra, para além da que o Marrocos precisa, mas vamos precisar de uma grande parcela da eletricidade gerada por esses projetos."
Ideias como essas confrontam o Desertec com outro desafio: como garantir que a eletricidade que a Europa necessita lhe seja enviada pelos cabos de transmissão, e que não seja toda consumida localmente? E como os países do Mena vão justificar vender a eletricidade à Europa - onde o preço da eletricidade no varejo pode ser 20 vezes mais alto --se a população local estiver sofrendo blecautes regulares, por exemplo?
No centro para visitantes em Kuraymat estão sendo distribuídas garrafas de água gelada antes de uma visita às instalações parabólicas. O sol da metade da manhã em novembro já está aquecendo o fluído semelhante a óleo de motor que fica dentro dos tubos receptores dos cochos - uma tecnologia não tão distante assim daquela criada por Shuman um século atrás - para mais de 400ºC.
BERÇOS TÉCNICOS
Perguntas técnicas estão sendo feitas por Bodo Becker, gerente de operações da Flagsol, empresa alemã especializada na construção de usinas de energia solar concentrada (CSP) nos desertos dos EUA, Espanha e, agora, Egito. A pergunta principal é sobre o desempenho dos cochos sob condições tão árduas.
"Temos em média apenas uma tempestade de área passando por aqui a cada ano", diz ele, "mas, sempre que o vento passa de 12 metros por segundo, viramos os cochos para baixo, na direção contrária ao vento, já que eles funcionam como velas gigantescas."
Becker diz que o maior desafio é manter os cochos limpos. "Devido às condições de poeira, o desempenho se degrada cerca de 2% ao dia, de modo que precisamos limpar os cochos diariamente. Usamos 39 metros cúbicos de água desmineralizada por dia para fazer a limpeza em toda a usina."
Isso surpreende muitos delegados, aos quais havia sido dito anteriormente na conferência que os cochos de CSP precisam de limpeza apenas semanal, comparadas aos painéis fotovoltaicos, que são limpos mensalmente. De qualquer maneira, isso chama a atenção para mais um desafio para a Desertec: será possível obter água local suficiente para a limpeza?
O Nilo fica a poucos quilômetros de Kuraymat, mas alguns países pretendem ir muito mais para o interior de seus desertos para construir suas usinas. Estão sendo desenvolvidas tecnologias de "limpeza a seco", mas elas reduzem a eficiência de geração na usina. De qualquer maneira, o fluido superaquecido de transferência precisa ser resfriado antes que possa retornar aos cochos para ser reutilizado, e, como é o caso com a limpeza, a água é a maneira mais fácil e barata de fazer isso. Enquanto as tecnologias de "resfriamento a seco" não avançarem, as usinas solares podem ser limitadas às margens de desertos, nas proximidades de grandes rios ou lagos.
De maneira contraintuitiva, alguns países, como a Jordânia, agora dão preferência ao vento como fonte de energia no deserto, porque a energia eólica hoje custa menos e não faz uso tão intensivo de água. Mas o que se prevê é que muitos anos vão se passar antes que uma só tecnologia de energia do deserto passe a dominar o mercado.
Alguns participantes no setor propõem o uso de painéis fotovoltaicos, mas hoje a CSP é mais popular. Mesmo dentro da CSP, porém, há os partidários dos cochos parabólicos e os defensores das chamadas "torres solares", que usam centenas de espelhos giratórios dispostos sobre o chão para acompanhar o sol e direcionar seus raios para um ponto fixo no topo de uma torre gigante.
Seja qual tecnologia sair vencedora, já está claro qual país em particular vai sair ganhando com o desenvolvimento do Desertec nas próximas décadas. Um membro da delegação visitante pergunta a Becker onde são feitos os cochos.
"Os berços metálicos foram feitos aqui no Egito, mas os cochos de vidro foram todos produzidos na Alemanha", diz ele. "E apenas duas empresas no mundo fabricam os tubos receptores de vidro, que é onde se situa a principal propriedade intelectual desta tecnologia: a Schott Solar e a Siemens.". As duas são alemãs.
Tradução de Clara Allain.
Fonte: Folha
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