A crueldade das carroças em Brasília
por Consuelo Dieguez
A ponte Juscelino Kubitschek, em Brasília, que liga o Lago Sul ao Centro da
capital, é considerada uma das belezas da cidade. É sustentada por três grandes
arcos assimétricos, projetados de forma a sugerir o movimento de uma pedra
chapinhando sobre o lago Paranoá. Inaugurada em 2002, a obra monumental consumiu
quatro vezes o valor orçado inicialmente. Tem duas pistas com seis faixas de
rolamento e uma vistosa sinalização nas extremidades indica que a velocidade
máxima ali permitida é de 60 quilômetros por hora; pedestres e ciclistas devem
respeitar os espaços a eles destinados; e, finalmente, não menos importante, a
circulação de carroças na via não é permitida.
A placa redonda, estampada com a figura de uma carroça puxada por um cavalo
desenxabido, cortada por uma faixa vermelha de proibido, pode parecer exótica
para forasteiros, principalmente os das grandes capitais. Mas, para os moradores
de Brasília, o alerta procede. Carroças com tração animal costumam circular
livremente pela cidade.
Em tese, elas já deveriam ter sido banidas das ruas. Mas o governo do
Distrito Federal faz vista grossa para os carroceiros porque não sabe como
realocá-los em outra atividade. Pobres e, na maioria, analfabetos, sem preparo
para outro tipo de trabalho, eles ganham a vida catando todo tipo de refugo:
ferro velho, papelão, entulhos de obra. Na maior parte das cidades, a tralha
geralmente é transportada em caçambas puxadas por potentes caminhões. Em
Brasília, é levada em carroças assentadas em lombos de cavalo.
José da Conceição é um homem negro, magro e de altura mediana. A pele
encarquilhada e a boca murcha, sem a maior parte dos dentes, lhe dão a aparência
de um velho de antigas fotografias, embora tenha 50 anos recém-completados. No
começo de uma tarde abafada de abril, ele tentava organizar o lixo – sua
mercadoria – acumulado num terreno baldio no final da Asa Norte, região
valorizada do Plano Piloto. O papelão para reciclagem estava empilhado no chão
de terra batida. Ferro e restos do que algum dia foram móveis estavam embolados
sobre a vegetação rasteira. Mais ao fundo, escondida sob arbustos do cerrado,
estava sua carroça, carregada de entulho, atrelada a um cavalo arqueado pelo
peso. José da Conceição se aproximou do animal e acariciou sua cabeça.
O cavalo cinza chama-se Badulaque e é ainda um potro. O dono diz tratar bem o
bicho, apesar da pesada carga que coloca sobre ele. Contou que fez curso de
carroceiro ministrado por técnicos do governo. Ensinaram-lhe a dar ração,
vacinas e vitaminas. Também disseram que a carga máxima suportada pelo animal
seria de 300 quilos. Mas ele admite que Badulaque costuma carregar o dobro. “Se
não for subida ele aguenta bem.” Alega que “cavalo foi feito para
trabalhar”.
Suando em bicas e espantando as moscas à sua
volta, o ex-sargento Fernando Alcântara, vestindo um pesado terno de risca de
giz, acompanhava com desgosto a fala de José da Conceição. Alcântara abandonou o
Exército há seis anos após sofrer uma dura perseguição da corporação em razão da
sua relação homossexual com o companheiro, também sargento, Laci Marinho de
Araújo, aposentado por motivo de saúde. Inconformados com os maus-tratos aos
animais, os dois criaram em Brasília uma ONG, o Instituto Ser, para lutar pelos
“direitos humanos e da natureza”.
Alcântara foi procurado por partidos políticos para que concorresse a uma
vaga na Câmara Distrital. Chegou a se filiar ao PSB, mas deixou o partido quando
este passou a abrigar a ex-senadora Marina Silva. “Essa mulher é uma
fundamentalista religiosa e essas seitas evangélicas são as que mais perseguem
os homossexuais”, disse. Bandeou-se para o PCdoB e sairá candidato a deputado
distrital, com a bandeira da defesa dos animais.
O caso dos cavalos de carga, segundo Alcântara, é dos mais tristes. “Eles são
trazidos ao centro veterinário da Universidade de Brasília com as patas
sangrando e o lombo cheio de feridas”, contou. “São tratados com muita crueldade
pelos donos.” Alguns animais chegam a ser cegados pelos carroceiros para não se
assustarem com o trânsito. Muito deles são velhos e trabalham até morrer por
exaustão. Outros tantos são sacrificados ao terem as patas quebradas pelo
excesso de peso que carregam. O ex-sargento queria que fossem levados para um
santuário.
Há alguns meses, Alcântara iniciou uma campanha para que cavalos e carroças
fossem substituídos por uma bicicleta movida a bateria, acoplada
a uma carroceria coberta. Pareceu-lhe uma ótima solução. “Os carroceiros não perderiam seu trabalho e os animais não seriam sacrificados.” Mas não considerou o custo do veículo – 12 mil reais cada. Como não encontrou quem bancasse o projeto, a ideia não foi adiante.
a uma carroceria coberta. Pareceu-lhe uma ótima solução. “Os carroceiros não perderiam seu trabalho e os animais não seriam sacrificados.” Mas não considerou o custo do veículo – 12 mil reais cada. Como não encontrou quem bancasse o projeto, a ideia não foi adiante.
Filmado todo o tempo por Laci, Alcântara
perguntou a José da Conceição se ele trocaria a carroça por um veículo
diferente, caso fosse possível. O carroceiro disse que já tentou ter uma Kombi,
mas, como é analfabeto, é proibido de dirigir. Não lhe sobraria outra
alternativa que não a carroça. “Estou cansado de levarem meu cavalo para o
depósito. Tenho que ir ao banco pagar uma taxa para soltá-lo e logo o prendem de
novo”, reclamou. “É uma espécie de sequestro e eu tenho que pagar fiança.”
Num português perfeito, José da Conceição contou que, antes de ser
carroceiro, era traficante. Mas agora, com o trabalho, tem “uma vida digna”, com
mulher e filhos. “É claro que eu queria estar num gabinete com ar-condicionado e
ser chamado de doutor José, mas não tenho essa chance”, disse. “Sou xingado
pelos motoristas, perseguido pela fiscalização, mas sou menos invisível do que
quando era traficante.”
Em seguida, o carroceiro reclamou da situação que considera injusta. “Dou
muito mais duro que esses deputados distritais e vivo aqui nessa sujeira e
pobreza.” Naquele dia, o Correio Braziliense havia noticiado que os 24
deputados distritais trabalhavam apenas às terças-feiras e tinham gastos de
cerca de 200 mil reais por gabinete. Conceição voltou-se para Alcântara e
apelou. “Espero que sua ONGpossa nos tirar dessa vida.” É o que ele promete.
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