O folclore amazônico conta que, nas noites quentes de junho, o boto cor-de-rosa emerge faceiro dos rios na forma de um elegante rapaz. Vestindo trajes sociais e um chapéu branco enorme (para disfarçar o narigão), sai em busca de senhoritas indefesas. Seu toque galanteador é implacável. Ele seduz as jovens e as convence a acompanhá-lo num passeio até o fundo do rio. Ali, o boto costuma engravidá-las.
Para quem vê de fora, é só uma lenda presente no imaginário popular. Para quem mora na região Norte, o boto cor-de-rosa é realmente um inimigo. Não só porque “tira a virgindade” das moçoilas. Ele também é acusado de ser um entrave à pesca, uma das principais atividades comerciais da região.
Os pescadores dizem que esta espécie específica de boto (Inia geoffrensis), o maior dos golfinhos de água doce do mundo, ajuda a soltar os peixes das armadilhas. E ainda estraga as redes de trabalho.
Esse pensamento arraigado está ameaçando a existência do boto cor-de-rosa, segundo um estudo da Associação Amigos do Peixe-boi (AMPA), com o apoio da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. A população da espécie corre risco de sofrer uma drástica redução nos próximos anos, devido aos impactos da pesca.
A associação pesquisou a interação de duas espécies com a pesca na região do Médio Solimões, no Amazonas: do boto cor-de-rosa e do tucuxi (Sotalia fluviatilis), aquele semelhante ao golfinho do mar. A situação do tucuxi, diz o estudo, não preocupa. As estimativas de mortalidade ainda estão abaixo do nível definido como sustentável. Mas a perspectiva para o boto cor-de-rosa não é nada boa. Cerca de 360 animais são mortos todos os anos. A média é pelo menos seis vezes acima do limite considerado razoável para não haver redução populacional.
Embora as duas espécies se enrosquem acidentalmente nas redes de pesca, só o boto cor-de-rosa morre depois da captura. Bem quistos pelos pescadores, os tucuxis geralmente são soltos nos rios – e conseguem se salvar. “O boto cor-de-rosa poderia facilmente ser libertado sem maiores danos quando emalhado em uma rede”, afirma Sannie Muniz Brum, responsável técnica pelo projeto. “Mas a antipatia que este golfinho provoca nos pescadores é um grande empecilho para seu salvamento”.
O boto cor-de-rosa sofre com outro tipo de pressão: a pesca do piracatinga (Calophysus macropterus), um peixe muito apreciado na culinária colombiana. A carne do golfinho é usada como isca para facilitar a captura do peixe. “O projeto estudou áreas em três colônias específicas, mas tanto a pesca quanto a captura com isca ocorrem em muitas localidades da Amazônia”, diz Sannie.
Há alguns caminhos para reduzir a mortalidade. Desde os mais óbvios, como ações de educação ambiental, ecoturismo e a criação de regras de manejo pesqueiro. Até os mais sofisticados, como um fundo para compensar os prejuízos financeiros causados pelos golfinhos aos pescadores. A associação começa a trabalhar com parte deles. “As comunidades que integram o projeto estão mais conscientes de sua relação com os recursos naturais”, afirma Sannie.
Fonte: Época
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