'Falar em preservação era poesia'

Arnaldo Carlos Müller, engenheiro florestal que chefiou ações de meio ambiente na parte brasileira de Itaipu, fala das obras e suas consequências

28 de novembro de 2012 
Bruno Deiro - O Estado de S.Paulo
O engenheiro florestal Arnaldo Carlos Müller tinha pouco mais de quatro anos de formado quando recebeu, em 1975, o convite para chefiar as ações de meio ambiente na parte brasileira de Itaipu. Em um mês e com equipe reduzida, elaborou um plano básico para compensar os impactos do enchimento do reservatório e nos 15 anos seguintes teve de lidar com a instabilidade política e econômica da empresa para pôr em prática os projetos de atenuação dos impactos - a questão ambiental, considerada supérflua na visão progressista do governo militar da época, foi uma das menos privilegiadas no período de construção da usina.
Müller trabalhou de 1975 e 1995 em Itaipu - Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal
Müller trabalhou de 1975 e 1995 em Itaipu
Que espaço havia para a questão ambiental nos primeiros anos de Itaipu?
Eu trabalhava com meio ambiente no governo em Brasília, em 1975, quando fui chamado para ser assistente de diretoria em Itaipu. Tinha menos de cinco anos de formado e, em alguns aspectos, era um trabalho para inglês ver, como se diz, em função da pressão externa provocada pela Conferência de Estocolmo (1972) e a participação dos financiadores internacionais. Naquele tempo nem se falava em meio ambiente no Brasil, não havia preocupação. Falar em proteger o verde era uma espécie de poesia para os militares. Nosso presidente da época (general Ernesto Geisel) não era simpático à questão, então a preocupação maior era com o reservatório em si e com o processo de desapropriação.
Como foi elaborado o planejamento contra os impactos das obras?
No primeiro mês de trabalho vimos a necessidade de se fazer um plano básico de conservação para o reservatório, com estudos e inventários da área de inundação. Foi elaborado em cerca de um mês por mim e outros três colegas e serviu para dar um norte aos trabalhos, sendo usado em toda a fase de preparação pela diretoria.
Há 30 anos, quais eram as exigências em relação a grandes hidrelétricas?
Não havia nenhuma exigência legal de contrapartida na área de meio ambiente. A única lei que havia naquela época era o Código Florestal, vigente desde1965, que exigia uma área de proteção permanente (APP) de 100 metros em volta do reservatório. Havia uma oposição muito forte do setor elétrico no caso de Itaipu, pois muitos achavam que não havia necessidade de replantar aquela área toda, mas o diretor jurídico da época, Paulo José Nogueira da Cunha, comprou a briga para fazer valer a lei.
Como foram tomadas as decisões mais drásticas e polêmicas, como a inundação de Sete Quedas?
Itaipu tinha quatro projetos prévios de viabilidade: econômico, ambiental, hidrológico e geológico. O de meio ambiente foi feito por Robert Goodland (conselheiro ambiental do Banco Mundial por 23 anos) e concluiu que Sete Quedas não tinha grande relevância turística. A prova apresentada é de que havia apenas dois hotéis pequenos em Guaíra, com dez leitos cada um. Quando entrei, as decisões principais já tinham sido tomadas.
Qual impacto sobre o ecossistema foi o mais difícil de ser evitado? 
Naturalmente aflora a questão de Sete Quedas. Sobre esse impacto, porém, havia muito pouco a fazer. Fizemos coletas de plantas da área rupestre das rochas de Sete Quedas, mas foi mais para registro. O salvamento foi tentado, mas com resultados pífios. Ao se formar o reservatório, descobriu-se que nas fendas das rochas havia centenas de morcegos muito pequenos, que escaparam da inundação e invadiram as casas de Guaíra, causando um pânico que durou três dias entre os moradores. Esse foi um impacto que não havíamos previsto.
Como foi realizado o trabalho na área que seria usada como reservatório?
Nossa equipe tinha cinco ou seis pessoas. Procuramos analisar a área que seria desmatada e toda a parte histórica que seria inundada. O diretor dizia que não tinha dinheiro para grandes ações, então desenvolvemos um sistema de resgate de fauna chamado mymba-kuera ("pega-bicho", em guarani), além dos refúgios biológicos.
De que forma foi feito este resgate?
Na medida em que o reservatório foi enchendo, fomos resgatando o máximo que conseguimos entre Sete Quedas de Guaíra e Itaipu. Tínhamos cinco bases, com cinco a sete barcos cada uma, e recolhíamos o que estava ao alcance (oficialmente, foram mais de 36 mil animais resgatados). Apenas de cobras venenosas eram cerca de 2,4 mil. Boa parte foi enviada de caminhão ao Instituto Butantã.
Quando foi demarcada a área de proteção nas margens do lago? 
Previamente, a APP foi demarcada fotograficamente. Fizemos então uma demarcação viva, plantando cinco árvores a cada cinco metros, em uma cortina de 1 milhão de mudas entre Foz e Guaíra que passava por plantações de trigo e soja de sujeitos que seriam desapropriados dali a dois ou três anos. Seis meses antes da inundação, pintamos as árvores que demarcariam a recomposição. Alguns equívocos, no entanto, foram cometidos.
Que tipos de equívocos?

Usamos uma árvore chamada leucena, que cresce rapidamente, não pega fogo e tem capacidade de disseminação muito grande, mas que virou uma praga na região nos anos seguintes, pois interfere no crescimento de outras espécies e acaba dominando o ecossistema. Ainda hoje, ela é combatida no oeste paranaense. Por outro lado, se não tivéssemos plantado uma árvore tão resistente, talvez a faixa de proteção não tivesse sido preservada por tanto tempo.
Quais trabalhos foram feitos após o enchimento do reservatório?

Com o lago formado, alguns diretores disseram que Itaipu sairia da mídia e haveria menos investimentos na área ambiental. Mas ainda havia muito a ser feito. Chamamos três jovens pesquisadores da Universidade de Maringá para fazer o estudo de ictiofauna do novo lago. Usando um recurso que seria impossível hoje, aproveitamos a verba de um outro contrato durante três meses para pagá-los. O trabalho deu origem ao Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupelia), que acompanhou a evolução da fauna aquática local nas décadas seguintes.
E como foi feito o reflorestamento?
Com baixo orçamento, tínhamos de reflorestar toda a margem (2,9 mil quilômetros). Um agricultor nos perguntou se poderia plantar árvores frutíferas. Fomos a campo pra ver se outros também queriam e fizemos um acordo para fornecer áreas com espaçamento de 2x8 metros, bem maior que os 2x2 a que eles estavam acostumados. Foram autorizados a cultivar frutas como amora, goiaba e manga por três anos à beira do lago, enquanto não houvesse sombra das árvores, desde que ajudassem a reflorestar. Com isso, foram arranjando mudas e assim plantamos 12 milhões de árvores entre 1982 e 1985, gastando basicamente apenas com transporte. Nesse meio tempo, entrou o governo civil e os projetos passaram a crescer.
Por que você deixou a empresa?
No início dos anos 1990, com dificuldades financeiras, voltou a mentalidade de que Itaipu tinha apenas de gerar energia e chegou a ordem de demitir boa parte do pessoal da área ambiental. Pouco depois, eu saí. Naquela época, pensou-se em repassar o refúgio biológico para as universidades locais, o que acabou não ocorrendo.
Como avalia todo o trabalho hoje?

Nas condições que nós tínhamos, acho que fizemos o possível. Se for analisado hoje, temos mais pesquisas e ações, mas o que estão fazendo são reajustes em relação ao que fizemos. O refúgio, por exemplo, tinha instalações precárias, hoje vale a pena visitar. Levo meus alunos lá todo ano, é gostoso de ver. Mas a ideia conceitual foi bem fincada há três décadas.
Que ações foram fundamentais?
Além dos refúgios biológicos, creio que o reflorestamento. Um dos efeitos paralelos é que quem plantou se sente até hoje responsável, não permite que as matas ciliares sejam desmatadas. Tínhamos só quatro pessoas na equipe, mas conseguimos mais de mil fiscais "voluntários" e hoje são mais de 25 milhões de árvores plantadas no lado brasileiro. / BRUNO DEIRO
Trabalhou de 1975 a 1995 em Itaipu e esteve à frente da equipe ambiental da margem brasileira da usina por 16 anos. É autor do livro Hidrelétricas, Meio Ambiente e Desenvolvimento. Atualmente, presta consultoria na área de meio ambiente e dá aulas de Engenharia Ambiental na PUC-PR. 

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