Sacrifício de animais em rituais religiosos: o legado do retrocesso


A autora deste artigo chama-se Bruna Corrêa. Ela tem apenas 18 anos e cursa o último ano no Colégio Militar de Porto Alegre.

A Secretaria Especial dos Direitos Animais sente-se orgulhosa em ver que os jovens estão participando da discussão sobre o tema com conteúdo e opinião que merecem respeito.

Nosso respeito e admiração por BRUNA CORRÊA:

"Em 2003, o ex-deputado estadual Edson Portilho deputado estadual apresentou  Projeto de Lei acrescentando Parágrafo Único ao Código Estadual de Proteção aos Animais, para garantir às religiões de matriz africana a realização de sacrifícios animais em seus rituais. O projeto foi aprovado no Legislativo gaúcho.

No ano seguinte, ainda com muitas divergências sobre o assunto entre as próprias facções políticas, o então governador Germano Rigotto aprovou projeto semelhante, mas estabeleceu restrições dizendo 'só ser legal que os sacrifícios envolvessem animais cujo abate visasse ao consumo humano'.

A Lei Estadual, em seu art. 2, estabelece serem ilegais quaisquer maus tratos a animais, mortes lentas e dolorosas, privações de ar ou de água, aprisionamentos em locais desprovidos de cuidados e, finalmente, sacrifícios por envenenamento ou qualquer outro método não previsto pela OMS – Organização Mundial da Saúde. Com a validação do projeto, foi adicionado, nesta mesma lei, Parágrafo Único estabelecendo que religiões africanas têm poder de livre culto, não se enquadrando em nenhuma dessas vedações. Ou seja, a lei é válida e rigorosa a todas as pessoas, proibindo-as de matarem, torturarem ou negligenciarem animais. Contudo é benevolente com grupos de minorias religiosas de matriz africana que se tornam exceções no cumprimento da norma.

Estando a lei em vigor desde 2004, o Ministério Público tentou recorrer ao apelo da anulação do projeto, uma vez que era alegada sua inconstitucionalidade, mas não obteve êxito. Assim, a lei tornou-se vigente e se estende até hoje, mesmo com inúmeras tentativas de mudar essa situação por parte de órgãos de defesa aos animais.

O Supremo Tribunal Federal estabelece o sacrifício animal não-imprescindível como um crime infracional. Além disso, por mais digno que seja o ritual, aos animais não estão sendo válidas as normas da Lei de Crimes Ambientais, que proíbem a mutilação, o golpeamento ou qualquer outro ato de crueldade. Também não há controle sanitário e eles, não são sedados, o que igualmente agride as normas federais.

A pergunta é: como foi possível que tais práticas fossem legalizadas? Algumas religiões de matriz africana, por exemplo, promovem a retirada de partes do corpo dos animais e o preenchimento de seus orifícios com sementes. Não é de se estranhar que exista tanta polêmica envolvendo o assunto, uma vez que diversas contradições legislativas foram evidenciadas no meio da discussão.

Todas as outras outras áreas, principalmente as de pesquisa laboratorial, passam pelo julgamento de Conselhos de Ética e são obrigadas a enviar relatórios, não podendo, simplesmente, sacrificar animais por conta própria, mesmo em nome da ciência. Esses requisitos não se aplicam aos rituais religiosos. Os adeptos possuem mais poder de ação do que cientistas.

Em um estado laico como o Rio Grande do Sul, a lei se mostra extremamente intransigente e insatisfatória, uma vez que diversas outras religiões – não necessariamente de matriz africana –, consideram o sacrifício animal um ato injustificável e abominável que fere diretamente as suas crenças. Até mesmo a maioria das pessoas que não têm uma religião definida concorda com o que diz respeito à falta de ética e de inconstitucionalidade, uma vez que a liberdade de credo ultrapassa o direito à vida e à liberdade dos seres e contradiz às Constituições Federal e Estadual, que entendem a crueldade aos animais como um ato infracional.

Existem diversos trechos na História Mundial que, hoje, são vistos com repulsa e contestação. Por muitos anos, a escravidão, o infanticídio, a mutilação de corpos, o sacrifício de bebês e o sexo forçado com virgens, a queima de pessoas, entre outras coisas lamentáveis, foram permitidas e encorajadas por diversas religiões. Nem sempre a liberdade de credo é viável. As religiões têm por base a busca pela paz interior, a limpeza do próprio espírito. Uma proposta que trata animais como objetos, como seres que são obrigados a servir às ideologias humanas e que ignora o direito inerente e biológico de qualquer ser vivo à vida, não pode ser aceito por qualquer Estado. Neste caso equivale a um tremendo retrocesso, além de contradizer o próprio significado da Religião.

A prática infracional de sacrifício a animais domésticos ocorre, e ocorre com frequência. É sabido que muitos órgãos públicos são chamados para locais ermos onde as matanças acontecem, geralmente, envolvendo religiões que se dizem africanas. Parece não haver um entendimento dentro da própria teia religiosa afrodescendente, pois há uma contrariedade de legitimidade de certos cultos por parte de representantes religiosos. De qualquer modo, essa mesma confusão serve como desculpa à continuidade da tortura e da matança dos animais, muitas vezes, influenciadas pela confusão dos Poderes Judiciário e Legislativo, que parecem não saber chegar a um acordo sensato sobre a questão.

Cabe ao Ministério Público, instituição que possui força ao defender a democracia, a justiça e, principalmente, os interesses da comunidade, resolver essa questão por meio de novas propostas e audiências. Uma vez tendo se mostrado contrário ao conteúdo da proposta, deve exercer sua influência como responsável pela gestão ambiental e social do Estado.

Sendo comumente vistos na rua destroços de animais, principalmente galinhas, após determinados ritos religiosos, o MP deve ter em mente que isso nada mais é do que uma degradação do patrimônio público, pois suja de maneira incoerente e desumana as ruas, calçadas, jardins, entre outros.

Se, por um lado, a cultura afrodescendente é extremamente importante para o Brasil, país multirreligioso e que muito deve da sua riqueza, em um século como o nosso, onde muitas descobertas foram feitas e onde a tecnologia avança, torna-se rudimentar e arcaico tratar-se animais como meros objetos de cunho religioso, criados para satisfazer as necessidades de crenças humanas.

A Ciência conseguiu concluir que certos animais possuem consciência, além de emoções, e que dividem com os humanos três coisas fundamentais: fome, medo e vontade de viver. Isso não é respeitado pela proposta. Muitos representantes desses credos africanos afirmam não ter a menor intenção de machucarem o animal e, muitas vezes, alegam não o estarem matando, mas, sim, o entregando como oferenda às suas entidades sagradas. Contudo, esta é uma interpretação do próprio executor, que desrespeita o direito à vida daquele ser, e que coloca seus próprios credos acima da sua importância biológica e do seu apego à vida. Com ou sem justificativas, nada muda a realidade, pois o animal sacrificado do mesmo jeito.

Um dos argumentos utilizados pelos defensores desse Projeto de Lei é que, uma vez que as pessoas consomem carnes e as compram em supermercados e açougues, os sacrifícios desses mesmos animais para consumo em ritos africanos não seria imoral. Contudo, resta-nos lembrar que nem todas as pessoas consomem carne. Mesmo se consumissem, o argumento não deixaria de ser absurdo, uma vez que o consumo de carne serve de alimento supridor de necessidades nutricionais humanas, direcionando-se à alimentação, o que prioriza o homem como predador. Sacrificar um animal em casos religiosos, contudo, não supre nenhuma carência biológica e não beneficia a saúde e a vida das pessoas.

Torna-se ainda mais grave a questão desses sacrifícios com a disfuncionalidade do município em exercer o poder de polícia administradora, muitas vezes, não sendo eficiente em fiscalizar o devido cumprimento desta lei já tão absurda por si só. Por isso, enquanto continua vigente, além de não ser devidamente cumprida em suas próprias previsões, também estimula outros estados a fazerem o mesmo, causando um efeito negativo de ação e reação pelo Brasil.

É de se admitir, por último, que falta, assim como um diálogo sensato e polido entre as partes – defensores dos Direitos Animais e religiosos –, maior maturidade por parte da população que confunde patrimônio cultural com vício comportamental agressor. Nem todo legado é positivo.

Uma vez abolido tal projeto, estaremos dando um grande passo para atingir o término da escravidão dos animais, que têm suas vidas sacrificadas a deuses humanos, sendo submetidos a crenças alheias e não possuindo direito à liberdade de viver, que é a própria função biológica dos seres vivos, quaisquer que sejam. Com essa atitude, o MP estará comprovando sua forte eficiência, estabelecendo a ordem e a manutenção da  paz interna. Considerando que as próprias comunidades religiosas são prejudicadas nesse aspecto, pois colaboram para a negativação de suas próprias imagens e são associadas à brutalidade de certas práticas sagradas que ainda perpetuam, inclusive elas estariam ganhando, contribuindo para o andamento da sociedade.

Uma vez responsável, segundo a Constituição Federal de 1988, de 'proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade’', estaria o Ministério Público sendo responsável por mais um progresso cultural e ético do povo brasileiro.

fonte: Informativo SEDA

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